sexta-feira, 19 de novembro de 2010

PARALIZAÇÕES NA FRANÇA

Marlon Miguel*

A França viveu nas últimas semanas uma série de protestos, mobilizações e greves com o anúncio do governo de passar a aposentadoria de 60 para 62 anos. Desse movimento, integrado por diferentes classes sociais e as mais diversas faixas etárias, uma série de questões emergiram. Questões que têm problematizado a estrutura social do trabalho e a exploração capitalista aliada à onda de reformas liberais. As reivindicações iniciais lançaram assim uma nova série de outras reivindicações, abriram espaço a reflexões e análises da conjuntura em diversos setores diferentes que, por fim, revelaram abusos e explorações bastante sérias.

Nesse quadro vimos aparecer nas últimas semanas um debate sobre a condição dos chamados précaire, os trabalhadores com contratos de curta duração (CDD, contrat à durée déterminée). A prática de CDDs na França aumentou Francaexcessivamente na última década e refletem o avanço de uma política econômica neoliberal, na qual os trabalhadores não possuem direitos trabalhistas plenos e se encontram em situações precárias por vários anos. Em princípio, os CDDs seriam destinados a tarefas definidas, por uma razão específica e por uma duração máxima de 36 meses – necessidade de se cumprir uma tarefa determinada em uma empresa que não possui um funcionário qualificado para aquela função e/ou ligada à substituição temporária de um funcionário doente ou em licença, por exemplo. O que vemos hoje, entretanto, é um alargamento e um uso excessivo dessa prática, de modo que empresas mantêm por vários anos funcionários nessa situação.

Essa modalidade de contrato, em que o trabalhador não tem a menor segurança, nem acesso pleno a seus direitos, é compreensível dentro da lógica de uma empresa capitalista. Trata-se da exploração máxima da mão de obra, sem o prejuízo que representa contratar de verdade um funcionário. Para a segurança do funcionário, no entanto, a lei prevê que, se um trabalhador assina diversos contratos de duração determinada ao longo de seis anos com um mesmo empregador, então este deve conceder ao primeiro um CDI (contrat à durée indéterminée, contrato sem duração determinada a direitos plenos). Consequência evidente, visto que nesse caso o empregado não cumpre mais uma função extra ou de substituição, mas é necessário para a empresa.

Toda essa lógica de exploração da mão de obra é, do ponto de vista ético, extremamente problemática, mas ela se tornou motivo de escândalo ao ser constatado que ela vem sendo praticada pelas próprias instituições do Estado. É o caso da prestigiosa École Normale Supérieure (ENS), que se tornou o palco de uma verdadeira guerra política ao longo das últimas duas semanas. Descobriu-se que diversos funcionários possuem CDDs de três meses sendo renovados há mais de seis anos, alguns há mais de dez anos, e com salários congelados a 1.100 euros (o salário mínimo na França estando em torno de 1.350 euros). São funcionários da cantina, biblioteca, jardinagem, secretarias, etc. que possuem problemas como aluguel de apartamentos e regularização de seguro-saúde, visto que não possuem verdadeiros contratos e salários. A isso tudo se adiciona que diversos funcionários, por estarem em CDD, não são remunerados durante as férias escolares.

A ENS é uma instituição pública, gerada por pessoas ligadas ao Estado, e que tem como objetivo formar a elite intelectual e política francesa. Os alunos, após passarem por um concurso público extremamente disputado, assinam um contrato com o Estado e se tornam funcionários. Jovens então na faixa de 20 anos ganham um salário em torno de 1400 euros e conquistam um futuro bastante certo. A diferença gritante no seio da instituição levou a uma reflexão e movimentação intensa e indignada por parte dos alunos e funcionários em situação precária. O movimento, sobretudo por parte dos alunos, reivindica o fim de CDDs e aumento dos salários de todos os funcionários para, no mínimo, o mesmo valor do deles. Os empregados precários se juntam pouco a pouco ao movimento, mas ainda são minoria ativa, visto que ao fazerem greve não são pagos o equivalente a cada dia sem trabalhar e têm medo de represálias por parte da direção visto que em CDD eles podem ser demitidos a qualquer momento.

A estratégia encontrada pelos estudantes foi então de bloquear as áreas de trabalho dos empregados de maneira que estes não possam trabalhar, mas que isso não possa ser enquadrado enquanto greve . Desse modo, os empregados podem participar dos debates, das assembleias gerais e das lutas sem perderem parte do salário e sem poderem realmente ser punidos.

A direção, por sua vez, responde de maneira brutal e evita o diálogo. Além do argumento da falta de verba, a direção afirma não poder fazer nada, visto que ela possuiria um número limitado de vagas para funcionários e que estes só poderiam se tornar funcionários públicos se passassem por um concurso. Como a prioridade da escola é empregar alunos e professores, não sobrariam vagas para as outras funções. Assim, por causa desse limite de vagas, a escola estaria no direito de empregar em CDD os demais empregados. O argumento é sem dúvida absurdo e bate de frente com o direito europeu, o que agora sendo levado a debate poderia causar sérios problemas à instituição e ao Estado francês como um todo. Se antes as reivindicações silenciosas dos empregados face à direção eram suprimidas pelo argumento de que essas condições de emprego são melhores do que nada e que outros, desempregados, tomariam felizes esses postos; a estratégia agora da direção se tornou a repressão. Faltando pouco tempo para uma nova eleição da direção da escola, a atual diretora Monique Canto-Sperber só deseja abafar toda essa história.

A estratégia de repressão consiste na ameaça da abertura de processos contra diversos alunos, acusando-os de desordem e depredação, e mesmo do afastamento de alguns. Além disso, instaurou-se, desde a semana passada, um estado policial de controle na escola. A direção se beneficiou do alerta vermelho e estado de emergência nacional, por conta do medo de um ataque terrorista, e pôde contratar um número assustador de vigias particulares que rondam a escola, controlam a entrada e saída de pessoas, obrigando todos a abrirem suas bolsas e mesmo impedindo alguns de entrarem. Dezenas de vigias, contratados em agências particulares de segurança, permanecem 24 horas por dias em ação o que leva a crer que o argumento de falta de verba não poderia ser tão sério assim. Além desses seguranças, descobriu-se que existem policiais à paisana rondando a escola, de forma que consigam pegar em flagrante alunos em atividade.

Essa resposta não é surpreendente em uma França que tem se valido constantemente da força para reprimir sobretudo os movimentos estudantis nos últimos anos. Mas, visto a emergência da situação, a atividade dos estudantes deve continuar. O movimento começa a ganhar forças junto a outras universidades, junto à mídia e ganhou essa semana o apoio também de diversos professores. Tudo leva a crer que uma verdadeira guerra política vai se travar nas próximas semanas. Está previsto para essa 2a feira, 15 de novembro, às 15h, uma reunião de discussão dos caminhos a se tomar, seguida de uma grande concentração de pessoas em frente à escola. Além disso, um jornal de mobilização, o BLOcage, já ganhou duas edições para difundir as informações do movimento, e uma caixa solidária de greve foi criada, de modo que os funcionários em greve sejam reembolsados por essa caixa.

Esse movimento, nascido de indignação por parte dos estudantes, funcionários e agora professores é sem dúvida uma luta pela reforma dos direitos. Mas trata-se também de colocar em questão a própria engrenagem capitalista e liberal. Com um aumento crescente do desemprego na Europa, é cada vez mais fácil criar uma massa de sub-empregados, de pessoas que trabalham como funcionários, mas sem os direitos de um. A exploração máxima de mão de obra e a criação de classes de um lado uma elite bem servida, usufruindo de plenos direitos e privilégios e, do outro, uma explorada, destinada a servir à primeira traz à cena a urgência de buscar soluções realmente radicais. Além disso, o surgimento de uma tal resistência e de uma organização rápida e efetiva por parte de todos serve de sinal para o resto do mundo: sinal de que as injustiças não podem passar impunemente e que é nessa tomada de consciência por parte do povo que a democracia se realiza.

*Carioca, estuda pós-graduação em Filosofia na
École Normale Supérieure, em Paris, desde 2008.

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